Conectar, comunicar e comover: o lugar da arte na contemporaneidade

Entrevistamos Mateo Piracés-Ugarte, da banda Francisco, el Hombre, para descobrir onde está o belo e para que serve a arte em 2020

Leonardo Sarvas
6 min readDec 3, 2020

Por Daniela Soares, Gustavo Dantas, Leonardo Sarvas e Vinícius Soares

Foto: Reprodução/Francisco, el Hombre/Som Livre

Um urinol é arte? Um objeto pronto, com uma assinatura e uma data estampadas em sua lateral, é uma obra digna de exibição em museus e galerias? Talvez, nem Marcel Duchamp (1887–1968), artista francês criador de “Fonte”, contasse com a longevidade dos seus ready-mades.

Hoje, Duchamp é visto como símbolo do Dadaísmo, movimento de vanguarda que surgiu em meio à Primeira Guerra Mundial, com atitude questionadora frente ao próprio conceito de arte. Mesmo assim, muito antes de se tornar ícone, o dadaísta encontrou resistência — e muita.

Sua técnica consistia na apropriação de objetos industrializados e na sua conversão em obras de arte que, então, encontrariam certa desconfiança por parte dos espectadores. Além do clássico urinol, o artista também assinou a escultura “Roda de Bicicleta” (1913), cujo nome não poderia ser mais descritivo, e “Porta-garrafas”, de 1914.

Da esquerda para a direita, “Fonte”, “Roda de Bicicleta” e “Porta-garrafas” (Foto: Reprodução)

Desafiadoras, questionadoras e provocantes, as obras de Duchamp colocaram em xeque os abstratos conceitos de arte e estética. Desde então, essas noções foram ainda mais contestadas, gerando debates fervorosos. Em 2017, três anos atrás, a exposição “Queermuseu — cartografias da diferença na arte brasileira”, com curadoria de Gaudêncio Fidelis, chegou a ser cancelada pelo Santander Cultural (Porto Alegre) após críticas de religiosos e do Movimento Brasil Livre (MBL). Nessa ocasião, o blogueiro Rafinha BK (MBL) disse, em relação a uma das obras da mostra: “Olha o Satanás no meio”. “Travesti de lambada e deusa das águas”, de Bia Leite, foi inclusive acusada por internautas de fazer apologia à pedofilia.

Contudo, não foram só as artes plásticas que desafiaram a sua própria noção. Ainda na esfera artística, a banda Francisco, el Hombre decidiu tratar de temas sensíveis, como o machismo, nas suas composições. Em “Triste, Louca ou Má”, indicada ao Grammy Latino em 2017, os músicos revelaram a “receita cultural” que é tradicionalmente esperada em relação à mulher. No último mês, a “Francisco” também fez parte do álbum “Replay: Acabou Chorare” e regravou a música “Brasil Pandeiro”, clássico dos Novos Baianos.

“Brasil Pandeiro”, cantado por Francisco, el Hombre

Para Mateo Piracés-Ugarte, vocalista e um dos fundadores da banda, “a arte tem o papel de comunicar. Ela é minha forma máxima de expressão. Ela serve para os três ‘c’: comunicar, conectar e comover”. Ele continua: “O papel do artista não é criar temas para serem falados. O papel do artista, da música e da arte é levantar e tocar temas que estão existentes, é observar o que está acontecendo em sua volta.”

“Vejo muito o artista como um observador”, opina Mateo. O vocalista também relembra o conjunto homenageado pelo projeto Replay: “Regravar Acabou Chorare é muito importante, porque, lá atrás, os Novos Baianos levantaram vários pontos que eram muito importantes de serem falados e que até hoje são”. Para o músico, a faixa “Brasil Pandeiro” traz a mensagem de valorização da América Latina e do Brasil.

Onde está o belo: um breve histórico da estética

“David”, de Michelangelo (Foto: Reprodução)

A percepção de belo variou ao longo da história e do espaço. Durante muito tempo, a beleza foi entendida como a função da arte, sendo essas duas vistas quase que obrigatoriamente como interligadas. Por mais caótica ou triste que fosse a trajetória humana, os artistas retratavam-na em numerosas obras de arte, dramáticas e satisfatórias ao olhar, transmitindo uma sensação de que tudo valeria a pena.

Na Grécia Antiga, Platão apontava que a beleza era uma forma de aproximação com o divino. Para o filósofo, ela era encontrada no rosto e no corpo humano. Apesar disso, ela não se tratava de um sentimento físico e, portanto, deveria ser apenas contemplada. Surge, então, o tão falado “amor platônico”. Por muitos séculos posteriores, artistas trabalharam a partir dessas concepções.

“A Criação de Adão”, de Michelangelo

Com o tempo, a arte passou a ser vista por alguns como preocupada, excessivamente, com a técnica. Essa abordagem muda somente no século XX, quando se sobressaem maneiras inovadoras de pensar a estética, destacando-se as vanguardas europeias, como o dadaísmo, o cubismo e o futurismo. A beleza perde tanta importância, e os artistas focam, sobretudo, em apresentar trabalhos originais, questionando tabus.

Atualmente, a ideia de mostrar o mundo como ele é, inclusive com seus diversos aspectos negativos, se revigora. Como resultado, ao deixar a beleza estética de lado, a arte passa a se misturar com outros gestos e comportamentos humanos. Assim, o movimento artístico adapta-se aos pensamentos de uma sociedade ávida pelo utilitarismo. De diversas formas, a arte em 2020 tenta desesperadamente capturar nossa atenção, tal como faz a propaganda.

Música como mercadoria: a perspectiva do século XXI

Primeira edição do festival Rock in Rio, em 1985 (Foto: Divulgação/Rock in Rio)

A música é um dos maiores produtos culturais da sociedade. Fato é que, no século XX, o impacto do capitalismo levou a diversas discussões acerca da indústria cultural. Dessa forma, filósofos e pensadores, principalmente os que encabeçavam a Escola de Frankfurt, levantaram a questão sobre a mercantilização da cultura e, consequentemente, sobre a transformação da música em mercadoria. A indústria cultural (termo utilizado por Adorno e Horkheimer) é justamente o que faz a música (antes objeto da cultura) adaptar-se para um padrão de consumo estabelecido pela sociedade.

Pensar música somente como mercadoria, no entanto, exclui seu senso comunicativo. Ela é, primeiramente, forma de expressão. Mesmo assim, um músico deve compor uma letra de forma que o produto final seja rentável para ele e, consequentemente, de modo que consiga alimentar o mercado de produções auditivas. Cria-se, assim, uma linha tênue entre a percepção de objeto cultural ou de mercadoria influenciada pelo consumismo.

Os gêneros musicais são vastos, vão do gospel ao erudito. Dentre eles, é a dita música “popular” que recebe maior influência da indústria cultural. O público molda o que escuta, e as produções se adaptam aos requisitos do mercado. Entretanto, nem sempre os artistas que agregam ao estilo são meras marcas.

“Triste, Louca ou Má”, de Francisco, el Hombre

Em entrevista, Mateo Piracés-Ugarte explicou que, quando compõe, prefere pensar na sua produção como forma de se comunicar: “Na hora da composição, eu não gosto de pensar na música como uma mercadoria e, sim, de pensá-la como instrumento de comunicação e expressão. Se eu quero comunicar, penso como as pessoas vão ouvir, como vão entender essa música”. Todavia, o vocalista salientou a importância do papel de mercadoria que a música pode assumir: “A partir do momento que você pensa na música como mercadoria, passa a ser mais fácil valorizar seu trabalho”.

As falas do músico traduzem o cenário da questão arte-mercadoria no século XXI. A perspectiva atual é de que existe de tudo um pouco. Há artistas cujas produções são completamente moldadas pelo consumidor, aqueles que produzem para expressar sentimentos ou, até mesmo, aqueles que vão radicalmente contra o mercado. Não há como negar que nossos ouvidos estão adaptados à indústria cultural e que aquilo que consumimos influenciará a produção musical. De qualquer forma, é indubitável que a música, como arte, seja sempre objeto de expressão profunda.

Dessa forma, temos uma espécie de anomalia que permite que os valores artísticos e mercantis da expressão artística coexistam, transformando a produção e a escuta da música em uma experiência na qual as ações impactam, não apenas o indivíduo, mas também toda uma esfera industrial criada a partir de um valor monetário.

Cena de “Mozart in the Jungle” (2014) (Vídeo: Picrow/Amazon Prime Video)

A tendência a seguir modelos rentáveis sempre estará influenciando o processo artístico, mas ela não o alterará completamente, assim criando os subgêneros da cena musical que permitem a expressão de artistas vistos como alternativos e independentes — algo que ajuda a construir um caminho mais afastado dos holofotes. A posição de mercadoria não invalida o valor e teor artístico de uma obra, mas o coloca ainda mais para reflexão e debate.

--

--

Leonardo Sarvas
0 Followers

Estudante de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e estagiário na Intel (antes: Rádio BandNews FM).